Mario Kaphan é engenheiro eletrônico formado em 1975 pela Escola Politécnica da USP, onde fez seu mestrado e lecionou por vários anos. Como estudante, professor e engenheiro, participou ativamente da fase de formação da indústria de microinformática no Brasil. Foi engenheiro-chefe de software na Scopus e, em 1984, criou seu primeiro empreendimento, a Humana Informática, que liderou o segmento de software de comunicação de dados no Brasil até o advento da internet. A VAGAS.com foi fundada em 1999 para propor novas soluções tecnológicas para a atividade de recrutamento e seleção, mercado que lidera de forma destacada no Brasil. Ao longo dos anos, a empresa criou o seu próprio modelo de gestão horizontal, premiado em 2014 pelo MIX (Management Innovation eXchange) nos EUA. Mário é pai de um casal de filhos e avô de duas netas.
Questão de Coaching: Como funciona o sistema de gestão da VAGAS.COM?
Mario Kaphan: Basicamente podemos dizer que funciona na base de uma boa discussão. Quando falamos em gestão resumidamente falamos de tomada de decisões. Isso numa empresa que funciona nos moldes tradicionais de hierarquia é delegado aos níveis superiores e a decisão é top down. Na Vagas as pessoas são confrontadas diariamente com decisões, existem equipes que são responsáveis por discutir as melhores práticas, mas qualquer pessoa pode contestar a decisão. Exige um grande desapego e um gosto elevado por discutir e chegar a um consenso. Valorizamos um ambiente vivo onde não existem verdades absolutas e o dia-a-dia é de construção.
QC: Qual foi o processo para chegar ao modelo atual?
MK: Esse processo aconteceu e acontece de forma natural. Não é um processo finalizado porque a Vagas é uma empresa que constantemente é auto avaliada. Desde o começo havia uma cultura de todos estarem engajados e participarem ativamente das discussões e decisões. Sempre enxergamos como um diferencial competitivo no mercado o fato de ser uma empresa pequena e que investia pesado no desenvolvimento de produtos, consequentemente a melhor propaganda era o boca a boca de clientes. Contudo, em um dado momento resolvemos eleger alguns profissionais a cargos de liderança. Felizmente logo percebemos que isso nos distanciava da cultura de engajamento, as pessoas começaram a se distanciar das tomadas de decisões e de viver os seus valores. Isso não durou um ano e talvez nesse momento caiu a ficha de que a Vagas funcionava em um modelo horizontal. E como dissemos, esse modelo não é concluído, estamos o tempo todo revendo e remodelando a forma de se trabalhar.Tudo isso foi sendo construído com a pressão de um crescimento muito rápido. Não aplicamos conhecimento/aprendizado de fora se ele não fizer sentido ou tivermos um bom motivo para isso.
QC: Existe uma estrutura de funcionamento formalizada?
MK: Sim, a Vagas é uma empresa que funciona por equipes funcionais e comitês multifuncionais. Temos mais de 30 áreas ou comitês. As equipes são responsáveis por áreas como vendas, RH etc. Elas são compostas pelas pessoas mais aptas à área e eles se reúnem quinzenalmente para discutir como podem fazer melhor ainda o que já fazem. Os comitês se envolvem entre as áreas com o objetivo de alinhar as atividades e tratar de assuntos comuns, pois como em toda empresa existe uma interdependência entre as áreas. Resumidamente a Vagas é uma empresa em que as pessoas podem fazer o que quiserem, mas todos tem tudo a ver com isso.
QC: Não existem chefes. E lideres, existem?
MK: Da mesma forma que o modelo horizontal surgiu naturalmente, a liderança também emerge organicamente. Não há liderança formal através de títulos, mas há atuação forte de liderança. Cerca de 94% da equipe reconhece que existe liderança de referência para o desenvolvimento do bom trabalho. Não se tem muita duvida de quem procurar sobre determinados assuntos. A importância das pessoas não está ligada ao poder hierárquico. O processo de seleção acaba reforçando esse modelo, pois sempre busca contratar profissionais que tenham algo a ensinar para a equipe.
QC: Como funciona o processo seletivo?
MK: O processo seletivo é complexo, pois temos que trazer pessoas que se encaixem nesse tipo de modelo, que é o oposto do trabalho frio, só para garantir o salário no fim do mês. Queremos pessoas que buscam vivenciar seus valores no trabalho. A primeira coisa a fazer é tirar o “brilho dos olhos”, desfazer o engano que ao entrar na Vagas terá liberdade total para fazer o que quiser. Procuramos mostrar a realidade e o desafio que é lidar com esse processo de tomada de decisões por consenso.
QC: Quais são os principais desafios para manter a empresa funcionando, com esse sistema de gestão?
MK: O principal motivo de desligamentos talvez seja a errada interpretação do lema “Eu faço o que quero e todos tem tudo a ver com isso”. Reconhecemos que o modelo horizontal não é fácil de vivenciar. Você tem que ser dono da sua carreira, não ter a expectativa de subir hierarquicamente, gostar de um bom debate, saber ser questionado por alguém que não tem o mesmo conhecimento que você sobre determinado assunto, enfim, saber lidar com a liberdade de forma responsável.Não é simples lidar com controvérsias, ser questionado por pessoas que podem ter menos experiências que você, lidar com consensos e ter que tomar decisões e se responsabilizar por elas. Esse é um grande desafio.
QC: Como a empresa lida com o erro?
MK: Com muita tranquilidade, quando temos certeza que o erro foi consequência de uma consciência de que estávamos acreditando no acerto. Se tomarmos uma decisão errada, voltamos atrás e buscamos um novo caminho.
QC: Como os impasses são resolvidos?
MK: Basicamente as decisões são tomadas em consenso, mas há momentos em que não conseguimos chegar a ele. Em algumas situações as pessoas exercem o desapego e decidem aceitar uma decisão, mesmo preferindo outra. Outra possibilidade é que mais pessoas sejam envolvidas para que tragam outras perspectivas para a situação. Se mesmo assim ainda houver impasse, na Vagas algumas decisões são adiadas, amadurecidas até que se consiga o consenso.Com o tempo vai havendo um aprendizado de quem deve ser convocado para determinadas decisões e isso agiliza o processo de consenso.
QC: Conte um pouco mais sobre o processo decisório?
MK: O fator chave para o crescimento é a vivência de valores e o cliente percebe isso. Os valores são postos a prova no processo decisório. Quando me defronto com a necessidade de tomar uma decisão como vivencio os valores? Nosso processo de tomada de decisão não se baseia na democracia, o modelo é fundamentado no jogo do convencimento para identificar a melhor ideia. Exige muitas vezes que você tenha prazer em perder uma boa discussão. Inclusive decisões de contratar e demitir são tomadas dentro desse processo. Decisões conduzidas isoladamente sem busca de consenso podem ser expressão do mau entendimento do modelo de gestão e são motivo de demissão.
QC: A Vagas pratica avaliação de desempenho?
MK: Sim, a avaliação é anual e realizada com base em quatro eixos: Conhecimento do negócio; Foco em resultados; Vivência da cultura e Competências técnicas. Cada pessoa avalia a si mesma e é avaliada por todos que trabalham com ela, nos comitês e equipes. Toda essa informação vai para um Comitê de Avaliação e Remuneração, que realiza uma análise e comparação. Cada profissional recebe feedback do RH em uma reunião de uma hora com elaboração de um plano de desenvolvimento. Desse processo saem indicação de evolução profissional e até de desligamento. Esse mesmo comitê é responsável pele condução da política salarial. Na Vagas o salário é confidencial e é proibido compartilhar o seu salário com quem quer que seja. Essa é uma questão muito complexa para ser discutida de forma mais aberta. Já tivemos essa prática , mas não funciona.
QC: A Vagas pratica uma metodologia de planejamento estratégico?
MK: Sim, em novembro começamos a discutir os principais temas por meio de conversas utilizando por exemplo world café. Depois temos uma enquete que escolhe as 16 pessoas que tem mais visão estratégica e são essas que participam de um encontro fora da empresa, em um hotel, para desenvolver os planos para o ano seguinte. São estabelecidos direcionadores que se desmembram em objetivos estratégicos. Esse trabalho é apresentado para toda a equipe e são constituídos comitês responsáveis por acompanhar cada direcionador. A cada dois meses realizamos uma reunião de acompanhamento, onde participam todos os comitês responsáveis por direcionadores e quem mais da empresa quiser.
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