Ela chega cedo, bem cedo para aproveitar o movimento das manhãs com seus fregueses cativos. É impressionante, mas parece que todos, quase todos, que passam por essa estação conhecem a Dona Ignez. Seu sorriso é contagiante, seus braços e pernas franzinos, seus olhos de alguma maneira tristes e suas mãos já cortadas pela marca do tempo.
Há mais de quinze anos ela segue firme na estação, na estação da liberdade como ela mesma comenta, no trabalho muito honrado e feito com carinho. Antes, sua mesinha tinha balas, chocolates e biscoitos, hoje, tem tudo isso e mais seus bolos caseiros, tortas e docinhos feitos por suas mãos e pelas mãos de suas filhas.
Com quatro filhos pequenos, três meninas e um menino, seu marido a abandona para nunca mais voltar. Essas pequenas criaturas sedentas por carinho e por uma família estavam entregues à garra e à perseverança de uma mulher extraordinária, de uma guerreira que era sua mãe.
Como as crianças eram pequenas, não havia como deixá-las em casa e nem dinheiro para pagar alguém que cuidasse delas. A solução foi lavar e passar roupas em casa. Entre pilhas de roupas, sabão e atenção, suas crianças eram sustentadas pela força de seus braços incansáveis de até 14 horas de trabalho diário. Com suas filhas maiores assumindo a casa e os cuidados com o irmão menor, Ignez segue em busca de melhor trabalho. Naquela época nosso país atravessava uma grande crise econômica, não havia muitas opções e ela não tinha referências, nem registro em sua carteira de trabalho.
Desesperada, desce do trem, encosta-se no trailer ao lado da estação e pede um copo de água para o Sr. Matheus. Ele, gentilmente lhe serve a água e percebe seu desespero, começa a conversar para distraí-la e, ao final, pergunta se pode ajudar em algo. Profundamente angustiada, com medo da vida e da fome de seus filhos ela desaba a chorar e suplicar por ajuda. Aquele momento, não só foi o início de uma verdadeira e grande amizade como também a oportunidade de ouro para que ela tirasse o sustento de sua família.
No dia seguinte Ignez chega bem cedinho, madrugada mesmo, monta sua banca e espera por seu amigo Matheus. Ele também madruga, precisa abrir o trailer e preparar os lanches para a hora do almoço. Além de lanches, ele vende bebidas, cigarros, salgadinhos e pilhas entre outras coisas. A união dos dois deixará à disposição dos clientes vários tipos de lanches, bebidas quentes e geladas e todo tipo de guloseima.
Com a clientela aumentando, Ignez e Matheus planejavam o futuro de seus pequenos comércios e criavam novas soluções e serviços para seus clientes. Ele contrata engraxates, vende cartão telefônico, capas de chuva, alguns livros e revistas. Ela e suas filhas preparam bolos, doces e tortas em sua casa. A rotina é dura, além de todo o serviço de casa, suas filhas mais velhas assam bolos e tortas durante boa parte do dia para que a mãe venda tudo na estação. O sucesso foi tanto que Ignez até recebia encomendas de bolos e doces para festas. Tudo parecia muito bem, sua casinha era paga, seus filhos crescendo, estudando e se alimentando. A vida, apesar de sacrificada, estava fluindo com união e amor entre a família.
Com toda essa agitação e trabalho, ninguém percebeu que Lucas, o filho mais novo, estava um tanto afastado da família, muitas vezes isolado em seu quarto ou sumido por horas pelo bairro. Sua mãe passava entre doze e quatorze horas na estação, suas irmãs cuidavam dos afazeres da casa, da preparação diária das mercadorias para venda e, com o mínimo tempo que lhes sobrava, davam alguma atenção para ele. Como era o único menino, as irmãs tentavam, na medida do possível, ajudá-lo com as tarefas escolares e o deixavam com liberdade para jogar bola e brincar com os amigos na vizinhança.
Foi exatamente o tipo de companhia com que Lucas estava se relacionando que gerou todos os problemas no futuro da família. A garotada do bairro, algumas ainda crianças, trabalhavam ou estavam envolvidos com o tráfico de drogas. Os pagamentos eram generosos, feitos em dinheiro ou em prestação de serviços essenciais para a comunidade. Isso significava absolutamente tudo porque, as famílias que tinham suas crianças como funcionários do comando recebiam suprimentos, cursos, consultas médicas e odontológicas, tudo pago pelo tráfico. É a grande oportunidade de preencher as deficiências que o Estado não cumpre e não entrega aos seus cidadãos.
Já se passaram quase duas décadas que Dona Ignez trabalha na estação, ela tornou-se um ícone do local, muitas pessoas param apenas para conversar, falar da vida, dos filhos e até sobre política. De segunda a sábado você a encontra firme em seu trailer, o mesmo que foi de seu grande amigo que, agora, infelizmente, já se foi desta vida. Pergunto a ela se pelo menos aos Domingos ela consegue descansar e ela, com um sorriso encantador no rosto, respira profundamente e me emociona ao dizer essas palavras: “Aos domingos, levanto-me cedo e parto ao encontro de meu filho, levo a ele notícias da família, pedaços de bolo e torta de sua preferência e descanso junto dele nas poucas horas de convívio que nos são permitidas”.
Há dois anos Lucas está internado na Fundação Casa. Depois de cometer pequenos delitos foi preso vendendo drogas. A família de Dona Ignez está crescendo, já são duas filhas casadas e 04 netos. Atualmente, seu maior sonho é ver Lucas livre e trabalhando com ela na estação. Na estação que lhe deu trabalho e dignidade, esperança e coragem para seguir em frente. Definitivamente, esta Brasileira é um exemplo de força, humildade e perseverança.
Quanta coisa podemos aprender com essa história!!!
Este é um texto de ficção, seus nomes e histórias são fictícios, qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência.
Rosely A. V. Motta
Formada em Comunicação Social e Pós-graduada em Recursos Humanos. Ao longo de 30 anos, desenvolveu sua carreira em todos os subsistemas da área de Recursos Humanos em empresas Multinacionais. Atualmente é estudante de Psicologia e trabalha como Voluntária em Hospitais e Instituições Públicas com o Projeto Social que desenvolveu chamado Livro do Bem.
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