Na Análise Transacional (AT) o termo Desqualificação se refere a um processo psicológico interno, um mecanismo que influencia a percepção da pessoa. Não tem a ver com criticar a si ou a outra pessoa, como o uso leigo da palavra desqualificar sugere.
Desqualificar, para a AT, é um processo onde a pessoa não percebe, não enxerga, “não se dá conta” de alguma coisa que está acontecendo. Isso pode ocorrer em três dimensões: ela pode não perceber algo nela mesma, no outro ou em uma determinada situação.
Mas por que alguém escolheria (embora ela não tenha consciência que de fato é uma escolha) não enxergar algo? Talvez pelo motivo de que se ela perceber “enxergar” o que está acontecendo terá que lidar com a situação, e isso pode ser muito difícil pra ela. Há ganhos secundários neste processo, muitas vezes não conscientes.
Existem níveis diferentes de Desqualificação, desde o mais severo até o mais sutil. No primeiro extremo a pessoa não enxerga a existência de algo, ela desconsidera uma informação, um fato ou um dado, como se não enxergasse que aquilo existe (pode ser nela, no outro ou numa situação). Num segundo nível, ela é capaz de perceber que existe algo, mas não considera que é importante. Pode ainda considerar importante, mas não acredita que possa ser mudado (nível 3), que não há forma de lidar com aquela coisa. No extremo mais sutil, no nível 4, ela acredita que há algo que possa ser feito, mas não acredita que ela possa fazer a algo a respeito.
Uma ilustração destes níveis, de forma simplificada:
Quando a pessoa passa do Nível 4, isto é, quando ela acredita de fato que ela mesma pode fazer alguma coisa a respeito da situação, ela não está mais Desqualificando, mas sim está potente o suficiente para elencar alternativas e escolher a que lhe pareça mais apropriada para agir.
Este conceito aumenta significativamente a eficácia dos processos de coaching, pois permite que as intervenções do Coach sejam adequadas e produtivas. Isso porque não adianta questionar o Coachee sobre quais alternativas ele tem para lidar com determinado problema se ele está desqualificando em algum nível anterior (por exemplo, se ele não acredita que se possa fazer algo diferente – nível 3).
Vou ilustrar com algo de minha prática.
Como Coach executivo e empresarial, atendo muitos clientes com questões de liderança. Alguns deles, inclusive, “convidados” pelo RH ou Diretoria da empresa, nem percebem que tem algum problema em sua liderança (desqualificação em nível 1, na existência do problema). Pode haver reclamações dos subordinados, turnover na equipe, desempenho fraco e metas não alcançadas, mas ele não consegue enxergar que possa estar relacionado à sua liderança.
Começo a trabalhar com este Coachee e ele percebe esta situação. Muito bem, ele já enxerga a existência, mas suas falas demonstram que ele não considera importantes as consequências disto, dizendo coisas do tipo “quem não se adequa tem que sair mesmo, o mercado está cheio de bons profissionais que querem trabalhar” ou “ah, subordinado sempre vai reclamar mesmo, isso não dá nada, faz parte”.
Minha próxima intervenção então é no sentido de que ele perceba quais as consequências da rotatividade e da desmotivação da equipe para os resultados. Trabalho com ele isso (o que pode ser um processo pontual dentro de uma sessão ou mesmo um processo que se constrói ao longo de algum tempo) e só depois que ele mesmo percebe o impacto negativo (deixou de desqualificar no nível 2) é que podemos ir para próxima fase.
A etapa seguinte é: “ok, então há indicadores de problema que podem estar relacionados à tua liderança e são coisas importantes porque trazem resultados negativos. É possível fazer algo para mudar?” Se o Coachee percebe que sim, vamos elencar quais as alternativas ele tem para lidar com a situação. Agora, se ele diz que não há como mudar esta situação, que não há o que fazer porque o problema é da crise econômica, porque toda equipe tem gente insatisfeita, porque a empresa não dá condições para agir etc etc, primeiro tenho que trabalhar esta crença dele, construindo uma de que é possível mudar, de que há, sim, opções. Caso contrário, se eu não ouvir isso que ele está dizendo e já querer avançar para o que ele pode fazer, possivelmente ele não colocará em prática as ações que criou ou se sabotará de alguma forma. Apenas quando este Coachee perceber que há opções de mudança é que ele estará pronto para avaliar quais as suas opções de ação. Alguns percebem logo que há possibilidade de mudar, mas não acreditam que eles possam mudar. “Mas é meu jeito, meu temperamento, não consigo lidar de forma diferente com a equipe” ou “mas eu não tenho poder para influenciar as decisões e políticas da empresa, eu não consigo”. O nosso trabalho então seguirá no sentido de convidá-lo a mudar estas crenças, a empoderá-lo e construir Permissão para que ele aja de forma diferente.
Mas Permissão já é um outro conceito da AT, que ficará pra outro texto.
Bom trabalho!
Jeffersonn Moraes – Coach, facilitador de grupos, empresário e empreendedor. Formação em Psicologia, com especialização em Neuropsicologia, em Dinâmica dos Grupos pela SBDG/RS, em Coaching pela ABRACEM/SP. Formação em Análise Transacional (AT202), Didata em formação da UNAT-Brasil para a Área Organizacional. Sócio administrador da QUIRON Desenvolvimento, atua no gerenciamento de empresas desde 1990 e em consultoria em Gestão de Pessoas e em programas de treinamento e desenvolvimento nas áreas comportamental e empreendedorismo desde 1999 em empresas de variados portes e segmentos. Expertise em desenvolvimento de lideranças e equipes. Facilitador do programa Empretec. Desde 2005 atua como voluntário em empreendedorismo social. Atuou como voluntário na ABRH e SBDG e periodicamente na UNAT, conde foi membro do Conselho Deliberativo e presidiu Congresso Brasileiro de AT em 2015.
Bom texto. Interessante e esclarecedor.